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sábado, 30 de março de 2013

A IDEOLOGIA ALEMÃ: RESENHA CRÍTICA E DESCRITIVA DA OBRA DE MARX E ENGELS

POR Almir Fabiano Nicolau de Moraes

TÍTULO: A Ideologia Alemã
AUTORES: Karl Marx e Friedrich Engels
TRADUÇÃO: Frank Müller
EDITORA: Martin Claret Ltda.
EDIÇÃO: 2006, Sumaré - SP
TÍTULO ORIGINAL: Die Deutsche Ideologie - 1932
ISBN: 85-7232-289-2


              A Ideologia Alemã foi escrita entre 1845 e 1846, permanecendo por quase um século em seu formato de manuscrito, sendo dirigida aos filósofos “pós-hegelianos”, com destaque a Feuerbach, Strauss, Stirner e Bauer. Os autores realizam uma crítica aos ideólogos alemães, em seus intentos de fragilizar a estrutura do pensamento hegeliano, substituindo, porém categorias abstratas por outras, num exercício que eles denominam de “meras sobreposições de fraseologias”. Assim, a obra em questão, além de possuir um “foco histórico” específico, pressupõe a interlocução com pressupostos teóricos específicos – a saber, a filosofia de Hegel.
              Marx e Engels denominam os ideólogos alemães de “carneiros que se julgam lobos, que balem de modo filosófico as representações da burguesia alemã” (A Ideologia Alemã, pg. 35), ou seja, tomando como metáfora o seguinte versículo bíblico direcionado aos doutores da Lei, porém de forma invertida: “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores” (Bíblia Sagrada, versão Almeida Corrigida – Mateus, Cap.7 vers. 5). Com esta colocação, os autores da Ideologia Alemã pretenderam demonstrar o sentido inverso do texto bíblico ao referirem-se aos ideólogos alemães, ou seja, que estes, na pretensão de demolir o sistema hegeliano com ataques “ferozes” às suas estruturas (lobos), na verdade acabavam por corroborar o idealismo hegeliano, substituindo conceitos abstratos elevados ao status de universalidade por outros, sendo, portanto apenas cordeiros mansos em seus “ataques”. Nesta metáfora pode-se perceber de onde parte a crítica de Marx e Engels aos ideólogos alemães.
              Para Marx e Engels, enquanto que na Europa ocorrem verdadeiras revoluções, na Alemanha a única “revolução” aparente se dá no campo das ideias, ou seja, no campo da abstração. Referem-se ao processo de decomposição do Espírito Absoluto, empregado pelos filósofos neo-hegelianos, que, cada um à sua maneira, elencou aspectos distintos da filosofia hegeliana para desconstruí-la, seja pelo conceito de Substância, de Consciência ou pelo Direito, mas que na tentativa de “dissolução” do Espírito Absoluto, acabam por transferir o ideal (burguês) de universalidade e atemporalidade para outros conceitos igualmente absolutos e subjetivos, como “Gênero”, “Único”, “Homem”, etc..
              Segundo os autores, o equívoco presente nas críticas dos “jovens hegelianos” (hegelianos de esquerda) ao sistema hegeliano se dava no foco por eles colocado no que denominavam de “produção de consciência” (representações, pensamentos ou conceitos) presente na filosofia de Hegel, que para eles era o verdadeiro “grilhão da humanidade”, ou seja, propunham que os pensadores deveriam lutar contra esta produção de consciência, para substituí-la pela “consciência humana, crítica ou egoísta”. Tal equívoco ocorria pelo fato de proporem apenas a substituição (troca de consciência) de uma categoria abstrata por outra, ocasionando na manutenção do sistema idealista, ou seja, transformação de consciência significa interpretar de modo diferente o que já estava dado, sem alterar-lhe a estrutura. Assim, ao atacarem o sistema hegeliano, acabavam por conservar-lhe, porém, meramente sob outros conceitos.
              Com o intuito de efetuarem uma crítica concisa aos ideólogos alemães, uma desconstrução efetiva do idealismo presente na filosofia hegeliana, e atacarem as ideologias em geral e principalmente alemã, os autores escrevem A Ideologia Alemã. Para tanto, certos da consistência de seus pressupostos, utilizam-se da própria filosofia de Hegel para, através de sua dialética e concepção determinista da História, proporem uma filosofia – que nesta perspectiva passa a assumir o caráter de práxis – que, partindo do real concreto dos indivíduos, tenha por objetivo a destruição de ideologias (que sirvam como instrumentos de dominação). Ao invés de partirem de conceitos, ou atacarem a estrutura do pensamento hegeliano, os autores partem da realidade (histórica) para fundamentação de seus pressupostos, invertendo a concepção de consciência histórica. Para os ideólogos alemães, a Consciência determinava o processo histórico, no sentido de que a História é o desenvolvimento (ou o retorno) do “conhecimento de si”, ou seja, partem de “dogmas” resultados do exercício do “pensamento puro”, portanto, arbitrários e inverificáveis empiricamente.
              Marx e Engels partem do pressuposto de que são as relações sociais (trabalho e produção da existência) – portanto históricas – que determinam a Consciência, invertendo a perspectiva idealista de História. Neste sentido, a Consciência é produzida historicamente. O primeiro pressuposto dos autores então é a constatação de que se existe História humana, primeiramente existem humanos vivos, ou seja, partem da constituição corporal destes homens, e sua conexão com a natureza em geral. Assim, toda historiografia (entendida enquanto ciência histórica) deve partir destes fundamentos naturais, e de sua transformação pela ação dos homens (no decurso da História). Para os autores, pode-se diferenciar o homem dos outros animais de diversas formas, entre elas a “consciência”, a “religião” ou qualquer outra, mas os próprios homens diferenciam-se dos animais assim que começam a produzir seu meio de existência. Aqui, a produção da existência, embora determine a produção da vida material, não se resume a existência física dos indivíduos, mas trate-se de uma forma determinada de manifestar sua vida, ou seja, um “modo de vida determinado”. Portanto, o que os homens são coincide com o que produzem, e o que produzem com o modo como produzem.
              Desta forma, Marx inverte o sistema hegeliano, sintetizando a dialética hegeliana com o materialismo de Feuerbach. Conservando a dialética como “movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição”, porém, a contradição estabelecida agora em condições históricas reais, é a Luta de Classes. A História, para Marx, é a História das relações sócias, dos homens produzindo suas condições materiais de existência, e também como interpretam essas relações.  Ora, se a História não é a “História do Espírito”, consequentemente a Alienação não é a “Alienação do Espírito”, mas a alienação real de homens reais em condições históricas concretas.  Necessário se faz, portanto, explicar as causas desta alienação.
              Segundo Marx e Engels, a alienação é alienação do trabalho. Portanto, discordando de Feuerbach, os autores deslocam a causa da alienação da religião, mas coloca-a como efeito de uma outra alienação, a alienação do trabalho. Esta condição de alienação do trabalho se dá pelo fato de o produtor não poder reconhecer-se no produto de seu trabalho, ou seja, não sendo detentor dos meios de produção, não pode também ser detentor do valor do que produziu, sendo, portanto transformado em mera “força de trabalho”.
              Reforçando, então, os pressupostos sobre os quais os autores desenvolvem seus pensamentos, os homens se distinguem dos animais não porque tenham consciência, mas porque produzem as suas condições de existência. A produção da existência se dá pelo trabalho, entendido enquanto “relação com a natureza”, e da divisão do trabalho, entendida enquanto “relação de cooperação entre os homens”. Assim, o trabalho, a divisão do trabalho e a própria procriação (família) constituem  as “forças produtivas” (trabalhadores), que determinam e são determinados por essa mesma divisão do trabalho. Os autores apontam que a divisão do trabalho inicia-se no próprio seio familiar, através da divisão entre agricultura e pastoreio, que conduzirão à separação entre cidade e campo, e que culminará na desigualdade social, pela forma da propriedade (conf. CHAUÍ,M. O que é Ideologia, 1984, p. 61). A primeira forma de propriedade é a propriedade tribal, estrutura ampliada de família; a segunda forma de propriedade é a propriedade estatal (propriedade privada coletiva), e a terceira forma de propriedade é a propriedade feudal (propriedade privada territorial trabalhada por servos da gleba) (CHAUÍ, 1980, p.62). Estas transformações das formas de propriedade privada culminam na propriedade privada capitalista.
              Na sociedade capitalista, os trabalhadores são mantidos em suas condições de “força de trabalho alienada” mediante a consciência alienada, processo pelo qual cada indivíduo permanece na atividade que lhe é imposta a partir da ideologia.  A ideologia surge da separação entre trabalho “braçal” (material) e trabalho “intelectual” (espiritual). Na divisão social do trabalho constitui-se, pelo conjunto das relações sociais, a ideia de Sociedade. Tem início então a ideologia,  pois a ideia de Sociedade aparece como existente por si mesma, “a priori” das relações humanas e determinantes das mesmas, justificando então a separação dos “papéis sociais”.
              A Ideologia consiste em separar a produção de ideias das condições históricas sobre as quais são produzidas, ou seja, dar às ideias status de universalidade, atemporalidade e apriorismo. A ideologia assume um poder superior e exterior à ação material dos homens, estabelecendo-se enquanto um poder espiritual autônomo, ou seja, não como resultado do pensamento de determinados homens que o produziram em seu trabalho espiritual, mas como entidades autônomas com existência a priori, descobertas por tais homens. Surge para encobrir a contradição existente entre as forças de produção, as relações sociais e a consciência, no resultado da divisão social do trabalho, sendo que na sociedade capitalista, trabalho e produção, usufruto e consumo não pertencem aos mesmos indivíduos. Neste contexto surge a percepção da desigualdade social, no sentido de que uns podem consumir, outros não; uns pensam, outros trabalham.
              Na sociedade capitalista, a distribuição desigual dos meios e condições do trabalho resulta em crise do sistema de dependência recíproca dos indivíduos, ocasionando uma falsa concepção antagônica entre os interesses comuns e individuais. É uma concepção falsa, resultada das ideologias, pois, onde há propriedade privada, não pode haver interesse social comum. É exatamente nesta aparente contradição entre interesse comum e interesse individual que surge o Estado, pois esse, assumindo forma autônoma, aparece como realização do interesse comum. Porém, ele é a forma pela qual os interesses da classe dominante são estabelecidos como aparência de interesses de toda a sociedade. Dessa forma, o Estado não é a superação das contradições, como afirmava Hegel, mas a imposição dos interesses de uma parte da sociedade sobre outras.
              Se o Estado aparecesse enquanto realização dos interesses de uma parte da sociedade, não conseguiria se estabelecer enquanto instituição organizadora do bem comum da sociedade, porém, para tal, estabelece-se enquanto domínio impessoal e autônomo, ou seja, amparado pelo Direito Civil. Pela Lei, o Estado aparece como um poder impessoal, ou seja, não pertencente a ninguém. Assim, o Estado e o Direito Civil instauram-se enquanto “superestrutura da sociedade”, de onde disseminam-se as ideias da classe dominante para toda a sociedade, como instrumentos de dominação destas, disseminadores da ideologia dominante.
              A sociedade civil é o palco da História, e, portanto, da luta de classes. Assim, a mudança histórica só pode ocorrer no âmbito político, no sentido de que os trabalhadores, alienados em seus “papeis sociais”, tornam-se massa trabalhadora, massificada pela ideologia. Ao tomarem consciência de sua condição alienada, pode-se ocorrer uma revolução civil, pela tomada do poder político pela classe proletária, interrompendo o processo de dominação pelo Direito Civil e alienação pela organização da produção econômica.
              Sendo a ideologia um instrumento de dominação das classes dominantes, é, portanto um instrumento de luta de classes. Desta forma, a ideologia não se constitui enquanto um processo subjetivo, mas um fenômeno objetivo produzido pelas condições objetivas da existência dos indivíduos. Ora, se a ideologia é um fenômeno objetivo, o resultado dela também o é, a saber, a alienação. Se a alienação se estabelece na concretude real da existência dos indivíduos, só pode ser “dissolvida” pela derrocada prática das relações de onde emana a ideologia, ou seja, não pela crítica, mas pela revolução (política).
              Deste modo, a teoria não está encarregada de “conscientizar” os indivíduos, mas tem um papel dialético na revolução, atuando como contradição (negação interna) da prática imediata, para revela-la enquanto práxis, ou seja, como atividade socialmente produzida e produtora da existência social (conf. CHAUÍ 1984, p.81). Enquanto a teoria não mostrar o significado da prática (imediata) dos homens, a ideologia se manterá (Ibidem, p. 87).
              Reforçando, já em caráter conclusivo, a classe dominante só pode manter-se dominante e explorando economicamente através de dois instrumentos: O Estado e a ideologia. O Estado funciona como instrumento de coerção e repressão, através do Direito. A função do Direito é legitimar a violência. A função da ideologia é impedir a revolta das classes dominadas, fazendo com que o que é legal torne-se justo e bom, e, portanto, válido para “todos”, substituindo então a REALIDADE do Estado pela IDEIA do Estado.

              Ler a Ideologia Alemã não foi um processo fácil, devido à forma “densa” como os autores escreveram, e o fato da interlocução que fazem, com pressupostos teóricos de suas épocas. Assim, a dificuldade para ler esta obra aparece na medida em que se percebe lacunas pessoais referentes à compreensão do sistema hegeliano, bem como o desenvolvimento do hegelianismo no idealismo alemão pós-hegeliano. Minimamente conseguiu-se apreender de certa forma a articulação dos argumentos após a leitura da obra da Marilena Chauí “O que é Ideologia”, fato pelo qual esta resenha balizou-se por esta obra que possui uma articulação dos principais conceitos que fundamentam “A Ideologia Alemã”, de forma sucinta, clara e objetiva.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAUÍ, M. O que é Ideologia. Editora Brasiliense, 14ª edição. São Paulo: 1984.
MARX,K.; ENGELS,F. A Ideologia Alemã. Martin Claret, 1ª edição. Sumaré: 2006, SP.
REALE, G.; ANTISSERI, D. História da Filosofia: Do Romantismo ao Empiriocriticismo. Ed. Paulus. São Paulo: 2005.

23 comentários:

  1. cara... me ajudou demais esse texto seu.. parabéns e obrigado.

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  2. Comecei a ler a obra, estava muito perdida. Resolvi ler algo que me ajudasse, encontrei seu texto, foi ótimo. Creio que agora posso retomar a leitura e compreendê-la melhor...Valeu! Muito obrigada!

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  3. Muito esclarecedor! Obrigado, ajudou bastante!

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  4. ótima contribuição, parabenssss!!

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  5. vc acabou de me salva ....estava perdida com o tema,porem depois que li seu texto tudo ficou mas claro...muito obrigada mesmo pode ter certeza que vou citar seu nome na minha apresentaçâo.

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  6. De fato foi muito elucidador! Amarrou as ideias habilidosamente

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  7. Thiago de Oliveira Aguiar24 de agosto de 2015 às 21:45

    Rapaz, baita mão na roda esse texto. Obrigado!

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  8. Muito boa a descrição de seu entendimento!

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  9. Nossa, muito bom!!! Você conseguiu fazer uma explicação simples, clara e, ainda sim, contendo todos os elementos essenciais do texto! Muito obrigada, ajudou demais!

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  10. Nossa parabéns pelo texto estava precisando para um trabalho na faculdade mas não estava entendendo o texto que a professora deu, mas depois de ler seu texto consegui entender.

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  11. Quanta sutileza e clareza! Parabéns! Ajudou muito.

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  12. precisava fazer um resumo do livro para a faculdade e estava com dificuldades de entender, vc simplesmente me salvou!!muito obg , blog maravilhoso

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  13. Ótimas reflexões, colocadas de modo claro e sucinto. Obrigada por disponibilizar!

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  14. Texto até que legal, vai me ajudar na minha apresentação de seminário

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  15. Top. Li o livro e não consegui entender, mas você foi brilhante elucidou bastante as ideias trazidas por Marx e Engels.

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